A calamidade não é a antessala do Estado de Defesa.

Publicado em 22 de janeiro de 2021.

Os requisitos de fato para a decretação do Estado de Defesa estão no caput do artigo 136 da Constituição. Suas consequências estão no mesmo artigo, § 1º, e ajudam a entender o caso em que se torna possível. Se um Presidente da República o faz em descumprimento da Constituição, incorre em crime de responsabilidade (artigo artigo 85, III). O cabimento do Estado de Defesa envolve dois remédios para um mal — só é lícito o decreto se este mal estiver presente e um dos remédios for útil. O mal a ser combatido é a ameaça à “ordem pública” ou à “paz social”. Sem essa ameaça, o presidente não pode emitir esse decreto. Hoje não existe qualquer sombra de ameaça à paz ou à ordem, portanto não cabe Estado de Defesa.

Mas o artigo 136 fala em calamidade e hoje temos calamidades, inclusive a causada pela pandemia. Então pode haver Estado de Defesa?

Poderia apenas se forem “a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (grifo meu). As calamidades não são motivo para o Estado de Defesa, elas são sitadas apenas como possíveis causas da desordem. Sem a desordem, não pode haver Estado de Defesa. Basta ler o trecho acima.

E se houvesse desordem, o Estado de Defesa poderia alcançar o país todo?

Nunca. O mesmo artigo 136 diz que o decreto precisa indicar os “locais restritos e determinados” onde vai ter efeitos. Não existe possibilidade de decretação de Estado de Defesa no país inteiro. Basta ler o artigo.

Mas existe o Estado de Calamidade Pública (DLG 6/2020. O Estado de Defesa não poderia ajudar o Executivo Federal a lidar com o problema?

O Estado de Defesa suspende direitos fundamentais, inclusive a ocupação e o uso temporário de bens públicos. Ora, as normas jurídicas podem apenas obrigar o comportamento de seres humanos. Não se pode revogar a “lei da gravidade” ou decretar que a Terra é plana. São fatos da natureza, como a evolução ou o clima, portanto fora do campo do Direito. O corona vírus, devo explicar bem, não é titular de direitos fundamentais. No inciso I do 136, § 1º, a alínea “a” menciona a suspensão do direito de reunião. Os vírus não precisam de autorização jurídica para se reunir nos órgãos internos das pessoas e as matar, como fizeram com mais de 200 mil brasileiros. A alínea “b” fala sobre restringir o direito de comunicação. Os vírus não exercem direito algum de comunicação para encontrar suas próximas vítimas, não leem jornais nem se informam sobre eventuais erros na administração pública. A alínea “c” permite a restrição ao direito de sigilo nas comunicações eletrônicas, permitindo ao governo bisbilhotar nossos emails ou redes sociais. Os vírus não têm isso, portanto não adianta nada restringir direitos fundamentais.

O inciso II do 136, § 1º, permite a ocupação e uso temporário de bens públicos. O que se viu até aqui foram Estados e municípios se preparando com a antecedência possível e se ordenando para o enfrentamento da crise. O único efeito de um eventual decreto neste sentido seria o de furtar aos demais entes federativos, com especial menção do Estado de São Paulo, a oportunidade de enfrentar o mal.

Qualquer estudante de Direito sabe que há dois sentidos para o Princípio da Legalidade. O primeiro é o da liberdade: na vida privada, podemos fazer tudo que a lei não proíbe que façamos. Ter um direito, neste sentido, é ter uma liberdade para fazer ou deixar de fazer alguma coisa, segundo critérios absolutamente pessoais. O Prefeito ou a Prefeita podem escolher, por exemplo, a religião e a Igreja que preferem frequentar. Faz parte da liberdade de credo, no caso.

O segundo sentido é o da competência: na vida pública, podemos fazer apenas o que a lei nos obriga a fazer ou o que ela expressamente permite. A mesma Prefeita ou o Prefeito do exemplo anterior, no exercício do Poder Executivo, só pode fazer alguma coisa se estiver numa situação que a lei preveja como requisito para aquela ação (ou omissão). Por isso a lei faz uma lista de requisitos para eles exercerem suas competências. A Prefeita pode nomear sua amiga como professora? Claro, mas apenas se for preenchido o requisito do concurso (ou procedimento simplificado, nos casos previstos). O Prefeito pode contratar a padaria do seu amigo para o fornecimento de lanches em reuniões de secretariado? Pode, mas apenas se forem preenchidos os requisitos da Lei de Licitações (Lei 8666/93).

O Prefeito ou a Prefeita podem escolher com extensa liberdade a maneira como preferem tocar suas vidas privadas, assim acontece com quem quer que exerça cargo público, em qualquer dos Poderes. O exercício de competências, entretanto, não é livre. Ou se faz o ato de acordo com os requisitos, ou se comete ilegalidade — eventualmente, crime de responsabilidade, punível com impeachment.


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