Estado laico

Publicado em 3 de novembro de 2020.

As eleições trouxeram inúmeras candidatas e candidatos com discurso fortemente religioso, dando ótima oportunidade para a gente conversar sobre a diferença entre o Estado laico e o confessional (confessionais são os que tem uma religião oficial, como era o Brasil até o Decreto 119-A/1890 e como é hoje a Arábia Saudita, por exemplo).

Cada país é leigo ou confessional à sua maneira, porque as constituições são muito diferentes umas das outras. O dispositivo mais importante na atual Constituição da República Federativa do Brasil, para o nosso assunto, é o art. 19, I. Ele diz que o Estado não pode ajudar nem atrapalhar nenhuma igreja, salvo quando uma lei autorizar a colaboração e, mesmo assim, apenas quando tiver interesse público real. Mas não basta isso para entender a forma do nosso Estado ser leigo, porque as constituições são sistemas complexos, então interpretar um artigo, sozinho, seria como entender uma frase num livro, sem ler o livro inteiro. Precisamos ver outros pedaços da Constituição para entender o contexto do art. 19, I.

A primeira coisa é que a sociedade se organiza pelo Direito (art. 1º). A lei está acima de qualquer acordo privado(art. 5º, II), então é ela que organiza as relações, isto é, a lei é que diz quem ganha e quem perde em qualquer situação. Criar o Direito é muito importante, se quisermos ter uma sociedade mais livre, justa e solidária. Então a gente precisa pensar bem antes de fazer essas leis: precisamos pensar quem ganha e quem perde, quais as consequências para os grupos envolvidos e para a sociedade inteira, como as pessoas passariam a se comportar, a produzir ou a agir economicamente, além das implicações éticas e morais da lei proposta. Esse raciocínio, sobre as consequências da lei, é o mais precioso na democracia. O Direito é o nosso instrumento para desenhar uma sociedade melhor, então é bom que todo mundo participe.

A sociedade brasileira é um ótimo exemplo do que pode ser mudado quando a gente melhora as regras. Até 1932 as mulheres não podiam votar. Até 1888 as pessoas podiam ser compradas e vendidas, sem direito algum. Até 1808 não podia haver gráficas ou manufaturas, nos condenando a importar todos os produtos um pouco mais complexos. Até 1988 o homem era o cabeça do casal, podendo mover uma ação para o juíz mandar a mulher aceitar que ele tinha razão. Até 1891 o voto era direito apenas de quem fosse comprovadamente rico. Até 1943 ninguém tinha direito a férias, décimo-terceiro salário ou descanso semanal remunerado. Até 1936 não existia salário-mínimo. Até 1988 não havia a licença maternidade. A lista é enorme e comprova que vale à pena pensar e mudar o Direito.

Essas mudanças, entretanto, não foram unânimes. Elas foram o resultado de conversas, alianças e conflitos de opiniões. Em negociações democráticas, as partes não conseguem exatamente o que pretendem. Elas ganham um pouco e cedem um pouco, modificam alguma coisa e tentam novamente. O resultado da discussão política é diferente do resultado ideal para cada pedaço da sociedade. No início o voto feminino era facultativo e o masculino, obrigatório. O resultado era que pouquíssimas mulheres votavam e muito menos eram candidatas. Mas o Código Eleitoral de 1932 criou a ideia de que mulheres podiam votar. Quando a discussão voltou, em 1946, o direito ficou igual para homens e mulheres. Se tivessemos uma religião oficial, as leis seriam religiosas e o assunto do voto feminino seria um assunto religioso, então o voto feminino iria demorar um tempo imensamente maior ou nunca seria aprovado. Uma coisa é negociar democraticamente uma lei no Estado laico, em que os argumentos devem ser debatidos racionalmente. Outra coisa, muito diferente, é negociar a fé religiosa. Ninguém negocia a sua fé, ninguém abre mão de um pouco da sua relação com a sua divindade ou concorda em ficar um mês a mais no inferno. As paixões religiosas, num estado confessional, impediriam a mudança legislativa. As pessoas decidiriam a partir de dogmas da fé, mesmo que compreendessem que a mudança poderia ser melhor para a sociedade. Em matéria de religião, o critério das decisões não é melhor para todo mundo, é melhor para a dividande na qual se acredita.

Por isso é que a religião oficial acaba significando sempre uma agressão a todas as outras. Por definiçã, ela deve ganhar sempre e as outras devem se submeter. O Estado laico, ao separar a religião da lei, permite que a democracia funcione.


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