Interpretação a partir da finalidade do Direito

Publicado em 19 de novembro de 2020.

O direito serve para fazer a sociedade melhorar, não para a gente continuar vivendo sempre do mesmo jeito. Prova disso é a interpretação das leis pela sua finalidade, que vou explicar com um exemplo. A Constituição (art. 7º, XVIII) criou o seguinte direito para quem trabalha: “licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias”. Numa primeira leitura, a impressão que se tem é que a licença é apenas para as mulheres que vão dar à luz seus filhos, por causa da palavra “gestante”. As mulheres que adotam uma criança não foram “gestantes”, não no sentido que o dicionário dá à palavra. Os homens tampouco podem ser “gestantes”, portanto não teriam direito à licença.

artigo 227, § 6º até diz que: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações (…)”. Logo, não importa como se deu a filiação, se foi porque a mãe deu a criança à luz ou se a adotou, todos os filhos têm “os mesmos direitos”. Porém vejamos que o texto da Constituição é claro, a igualdade de direitos é dos filhos, não das mães. E o direito à licença é da mãe, não do bebê. Assim, apenas as mães gestantes é que teriam o direito à licença. Mesmo na dolorosa hipótese da mãe que falece dando à luz, o pai ou a outra mãe teria que lidar com a dor da perda, com as necessidades de um bebê que veio ao mundo sem a mãe biológica e sem possibilidade de ficar com ele durante os primeiros meses. Porque a licença é direito da mãe, não da criança.

Aí é que entra o meu assunto: o que a licença está protegendo? O mais comum é que as mulheres se recuperem do parto em semanas. A finalidade da norma não é apenas dar bem-estar para as mães, é dar as melhores condições possíveis à criança recém nascida. A licença é concedida à mãe, porém a finalidade é proteger o bebê, que precisa de atenção e carinho especiais durante os primeiros tempos. A finalidade é que os bebês, na nossa sociedade, recebam esse cuidado, porque isso é fundamental para a gente conviver com adultos melhores (inclusive as mães e pais, que sofreriam sem a possibilidade de proteger seus filhos). Além disso, também é importante incentivar a adoção, outra finalidade da licença.

Por isso tudo é que o STF decidiu que as pessoas que adotam têm os mesmos direitos das mães gestantes. A lei anterior previa uma gradação, concedendo tempo maior para os adotantes de bebês e menor para o caso das adotadas serem crianças com alguns anos de vida. Com a decisão (de 2016) as licenças ficaram iguais. Por causa do reconhecimento da finalidade da lei (proteger e dar carinho especial aos bebês, quando chegam em casa) é que o STF também decidiu que os 120 dias começam a contar da alta do bebê, em caso de complicação clínica. Se o parto acontece hoje, mas a criança fica internada algumas semanas, a licença se estende. Nessa hipótese, o prazo dos 120 dias começa a contar da alta clínica, não do parto.

Nada disso seria possível se direito não tivesse uma finalidade, um objetivo para o futuro. Se a gente pensasse no direito como um texto parado no tempo, sem projeto de futuro para a sociedade, direitos de mães e filhos ficariam desconectados. Homens e mulheres solteiros nunca teriam direito à licença “gestante” quando adotassem. Muitos casais deixariam de adotar criancinhas porque não teriam como cuidar delas durante os primeiros tempos. Avós não teriam como cuidar de seus netos, na hipótese de falecimento de mães solteiras. Pais não poderiam cuidar de seus filhos, na impossibilidade da mãe o fazer. Crianças ficariam sem cuidados tão carinhosos num momento especialíssimo.

A interpretação pela finalidade mostra que é olhando para o futuro que a gente consegue entender melhor o direito. Se ele não tivesse finalidade transformadora, estaríamos condenados a reviver o passado indefinidamente, sem nada aprender.


Publicado

em

por

Tags: